segunda-feira, agosto 30, 2010

Monologo á Carolina

E sai assim em jeito de segredo para a aldeia:

Acordo todas as manhãs com o sabor a sangue na boca, quando vou ao banho cuspo para o chuveiro e a saliva sai cor de rosa. Tenho o gosto a ferro todos os dias, sabe-me a mim.
Passo os dias a morder a língua, mordo-me tanto que as feridas não chegam a cicatrizar.
A senhora sente-se mal? Mordo a língua.
Quer dar licença? Mordo a língua.
Odeio que tenham os seus interesses.
Se penso assim gosto de pensar assim, que tem alguém a ver com isso? Retraio-me de deitar cá para fora o que penso e vou fazendo feridas.
Não vão as pessoas pensar mal de mim, coitadas, têm uma ideia tão boa de si que se a pessoa que aqui se mostra não se morder irá estragar suas pobres impressões de tão bons que se veêm, coitadinhos!
Têm tantas opiniões a dar sobre como se deve viver a tua vida! E a minha? A dos outros.
Pessoas....
Pessoas que pensam que o mundo existe para elas. Fazem do mundo seu.
Odeio pessoas.
Detesto pessoas, quero passar mas não se desviam e quando querem passar tenho que me desviar.
Quando quero algo tenho que dizer porque o quero e nunca me dão nada por que o peço, estão me sempre a pedir coisas que não gosto de dar.
Porque tenho que dar o braço a torcer quando as coisas são iguais para os dois? Desgosto de ter que fazer o que os outros não querem.
E depois têm ideias escondidas, escondem-se perante toda gente, não me contam nada, querem que lhes dê o lugar mas depois dizem que não, quando lhe pergunto educadamente respondem-me educadamente que não. Mas que não o que?
Que se foda a educação.
Seja quem é.
Eu já nem como uma senhora me posso portar, sou demasiado nova para estar cansada, e demasiado velha para que tenham pena de mim. Ninguém já dá respeito ás mulheres, todos têm o rabo grande e as portas são pequenas demais para todos.
Eu como sou, já não digo bom dia aos outros para parecer bem, já não sorrio, lá vou mordendo a língua, se me chamam a pedir uma ideia sobre o que acham mordo-me. Odeio que me peçam ideias sobre um assunto onde querem reconhecimento, não se pedem ideias que não queremos ouvir, então, mais valia estarem calados.
...
...
Então sim, eu calo-me, e oiço.
Oiço.
Oiço merda, todos os dias, a toda hora, falam da sua vida, contando como fazem, o que fazem, a ninguém com verdadeiro interesse, fica depois então o falso querer, aquele que é estar, ouvindo acenando, sim que interessante, tens uma bela vida, sim toda a razão, com certeza, e depois espenico a língua entre-dentes, hoje estive quase, quase, quase a dizer o que realmente pensava, e por dois segundos não destruí a imagem que todos tinham de si, e aí era o terramoto dos egos.

Uns negavam, cegos de si, este louco veio-me destruir com blasfémias, que doido vem a ser este? animal destruidor de vidas alheias, estive eu aqui a confiar minha vida e vem esta peste sem qualquer valor de vida agora dizer mal de mim?
Há outros que ignoram, mudam de assunto, como se fosse uma queda de ligação que iremos retomar brevemente, ninguém viu a quebra? Não há lugar para duvidas foi algo que aconteceu sem sentido, sem razão, não vale a pena relembrar o que não tem importância, é o faz de conta, como uma senhora da alta sociedade largar um peido, Não se ouviu? Ouviu! Mas agora o cheiro que lhe fazemos?.
Outros brincam, começam com uma gargalhada surpresa na esperança de ter tempo e ponderar o que realmente aconteceu, são os mais inteligentes que mantêm a sua torre egomaniaca de pé com estes truques, riem e viram as verdades para quem a diz, ridicularizando-me ou então fazem pequena a verdade, tão pequena que nem tem importância, é a brincar e a brincar como no Carnaval ninguém leva a mal .
Já os raivosos não aceitam muito bem, mandam tudo para o caralho, ide todos para o caralho, ou para a mãe que te fez nascer, ha sempre putas em conversa e ai de quem as pronunciar, traz zaragata, e a verdade? Alguém se lembra da verdade?
A verdade fica para quem mordeu a língua.
Há sempre os mais burros que ouvem, mordem a língua, é verdade, vou contra argumentar com a verdade? Só há uma forma de o fazer... e como? Dizendo a verdade.
Há alguém disposto a ouvi-la?
Existe meia duzia de pessoas que sim, mas são tão poucos que nem valia a pena falar, só lhes falo deles porque são senhores e senhores destes merecem respeito. São senhores como disse, e quando ouvem a verdade não mordem a língua, curiosamente calam-se e seguem a vida.
Não mandam bufas, não chamam putas, não há alhos ou palhaços. Calam, consentem.
E aprendem.
Senhores de vida digo eu. Conhecem algum?
Podem morder a língua, pois sei que eu cá não sou assim.

João Francisco Marques

Caras



Odeio nunca esquecer.
Esquecer o que peço para esquecer,
esquecer o que fiz sem querer lembrar.
São esses a que me peço para desligar.
Mas não, vou ficar com tudo, cada cara, cada sentimento a cada momento passado, de todas as pessoas com quem eu já olhei.
São centenas e centenas de álbuns de fotografia com caras e expressões, de sorrisos e lágrimas.

O que quero lembrar é,
o que não sei já. Que sei por vezes a quem não esquece o que não era suposto.

Conheces? Não.
Eu nunca esqueci, mas não me lembro da sua vida.

Tantas vezes perguntei ao mundo o porquê de viver se um dia vai desaparecer.
Hoje castiga-me.
Ele estigma-me a lembrança de caras e emoções que já não sei de onde vêm.
Faz parte da vida, relembrar uma cara com um vazio que nos atormenta.
Sei de tudo o que não era suposto. Sinto tudo o que não devia sentir.
Fico-me a esperar que um dia desapareça, e talvez nesse dia consiga olhar alguém nos olhos, se um dia a tiver visto, se tiver esquecido,
quero falar com um estranho e ler um novo olhar. Talvez mais tarde lembrar.

Porque...a vida....
...a cada momento....
...a
todo o momento devia ser guardado, frame a frame, como se todos os momentos ficassem presos em fotografias tiradas pela máquina velha e suja do teu tio, um momento revelado e guardado num álbum pesado para só ser visitado quando vamos arrumar o escritório ou mudar de casa.
A vida, pelo menos a minha, é um emaranhado de fotografias más que ficaram e as boas desapareceram, todos os dias tenho defronte de mim livro grande com cada momento passado para não lembrar, frame atrás de frame em papel fotográfico antigo de caras e sentimentos indesejados ou até de desconhecidos.

Um dia vou comprar uma máquina fotográfica bem velhinha e fotografar cada belo momento que viver, revelar em pelicula passada da validade e espalhar por todos os velhos álbuns os novos frames de uma nova vida.

João Francisco Marques