Excerto d' Cidade dos Seus
"Quando vejo uma
multidão de pessoas enfiadas em autocarros e comboios, cada um de si para si, com
semblantes assombrados pela sua persistência de ausência reactiva à vida,
carrancudos pelo peso carregado de uma existência infeliz ou cinzenta, ainda por
vezes feliz, mas sempre ocupando a mente de pressupostos indescritíveis com as
palavras simples do dia a dia, eu realizo em mim uma consciência de exaustão
simples, quando o mundo são os pés que me suportam, ou a minha universalidade
mental que revolve todo o existir, não diferente de todos os outros com meus
pensamentos e ausências.
Vejo que a singularidade com que existimos é o que nos
faz pressentir uma diferença ao mundo quando a mesma não existe, que não serei
diferente do mais próximo que me acerca, ou quanto mais serei eu diferente do
mais distante, sejam eles amigos ou inimigos, além da minha própria cena que me
dita as regras, não me prevejo mais do que um mandado actor inconsciente das
falas e cego ao improviso.
Conformei-me em retirar da vivência actual a variável de
outros seres, para me fazer sentir sozinho, para me aperceber que o mundo é tão
grande quanto as pessoas que nele vivem, e a sua imensidão é sentida quando a
ausência do próximo é mais notada.
Fugi dos carros e das calçadas, corri com os estendais
atravessados por ruelas apertadas, esqueci o ziguezaguear ébrio que povoa os
cantos de tascas apertadas, abandonei as garrafas vazias que jazem pelas
janelas que já não abrem, deixei a cidade povoada de cheiro fétido e de poiais
mijados para trás de mim, procurei o cume da silhueta que o horizonte mostra,
esperando nele encontrar o que não encontro entre tantos seres que respiram,
procuro a minha consciência própria, imaculada de interferências e excesso de
antenas que me permita sentir a pessoa que há mim, ouvir o pensamento cá
dentro.
Caminhei para o topo da montanha que silenciosa observava a
cidade assolada de pecado lá em baixo, ao percorrer o caminho até ao cimo, não
encontrei gentes com ideias, não as procurei pelas pedras que cruzava, não bati
nas portas de velhos montes abandonados, levantei a cabeça bem para cima e
continuei a caminhar, pé ante pé, passo a passo, cada um mais esforçado que o
anterior, cada vez com mais dor, vi as árvores que sombreavam com seus galhos
um chão seco e ríspido, vi a cidade pelas minhas costas, a pouco e pouco a
fazer parte do horizonte, deixando de me envolver, ficando eu coberto pelo
silencio da montanha e pelo perfume fétido ausente.
Senti cada pedra do chão, cada galho perdido da sua árvore,
cumprimentei cada árvore e furtivo animal, abençoei cada brisa que me aliviou,
absorvi cada raio de sol que me aqueceu, agradeci por todas as descidas e
aprendi com todas as subidas, venerei cada gota de água que bebi das fontes límpidas
e afastadas da povoação, deixei de sentir os edifícios, as suas gentes e sequer
a lembrança da sua presença afastada, passo a passo aproximei-me do horizonte
que agora é presente e monstruoso, dando lugar a um novo horizonte longínquo e
quiçá mais belo que este que se apresenta diante de mim.
Após a subida, exausto, sentei-me no topo, ofegante respirei
o ar fresco e frio que dançava ao redor do cume, olhei à minha volta, vi
silhuetas de montanhas cada uma maior e mais distante que a outra, vi as luzes
amarelas da cidade ao fundo, ouvi o vento, ouvi as folhas escorregando, toda a
natureza demais circundante, tentei esforçar-me para ouvir os meus pensamentos,
tentei meditar sobre mim mesmo e a minha consciência humana.
Ah como é bela a vista que se me apresenta.